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“Protege-me, ó Deus, pois em ti me refugio. Ao Senhor declaro: Tu és o meu Senhor; não tenho bem nenhum além de ti”. Salmo 16:1-2
Se o Salmo 15, ontem, nos ofereceu uma lista de características esperadas daqueles que pretendem habitar o Tabernáculo de Deus, o Salmo 16 é uma expressão de plena alegria, resultante de uma vida completamente submissa à vontade de Deus. Me chama a atenção o fato de que, ao contrário do que muitos dizem, o salmista entende que submeter-se à vontade do Eterno não lhe priva da liberdade, muito menos o impede de ser plenamente feliz. Ao contrário disso, ele parte do pensamento de Deus como seu único protetor e refúgio e, como em poucas outras vezes no Antigo Testamento, termina o poema declarando sua fé e esperança na vida eterna.
Diferente de outros salmos, este não começa pedindo por socorro, nem mesmo lamentando sua situação complexa e complicada. Ainda que não esteja vivendo uma vida isenta de desafios pontuais, ou até mesmo perigos incontáveis, o salmista decide iniciar este belo poema com uma oração sincera e confiante; começa orando por proteção contínua e permanente, justamente por reconhecer sua total dependência de Deus. “Protege-me, ó Deus, pois em ti me refugio”, diz o salmista (v.1), “Tu és o meu Senhor; não tenho bem nenhum além de ti” (v.2); “Senhor, tu és a minha porção e o meu cálice; és tu que garantes o meu futuro” (v.5).
Acompanhando um pensamento muito parecido com este, Jeremias, mais tarde, escreveria: “Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a sua fidelidade!” ((Lm 3:22-23). Ainda que estivesse vivendo os assombros de um momento muito triste na história de Israel, o profeta encontraria forças suficientes para declarar: “A minha porção é o Senhor; portanto, nele porei a minha esperança. O Senhor é bom para com aqueles cuja esperança está nele, para com aqueles que o buscam; é bom esperar tranquilo pela salvação do Senhor” (Lm 3:24-26).
Também é importante lembrar que Pedro, muitos anos depois, faria uso das palavras deste salmo. Enquanto pregava diante da multidão perplexa pelo fato de os discípulos estarem falando em suas línguas nativas a respeito da vida, morte e, principalmente, ressurreição de Jesus, o apóstolo utiliza as palavras do Salmo 16:8-11 para lembrá-los que o rei Davi já falara do que estava acontecendo, chamando a atenção dos ouvintes para a afirmação do salmista, centenas de anos antes, que o Pai não permitiria ao Filho permanecer na sepultura. Pedro aproveita para esclarecer que, havendo Davi morrido, e sepultado estava até aquele momento, suas palavras só poderiam dizer respeito a Alguém ainda maior que ele, que viria com uma missão muito especial, inclusive para vencer a morte. “Prevendo isso, falou da ressurreição do Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu decomposição”, disse Pedro, e acrescentou, “Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato” (At 2:31-32).
Aos olhos de Davi, Deus não era resultado de delírios ou da imaginação. Considerava o Eterno como um companheiro de viagem que segue um amigo lado a lado. Entendia valer para ele as mesmas possibilidades oferecidas a Enoque, que andou com Deus (Gn 5;22), e Moisés, “a quem o Senhor conheceu face a face” (Dt 34:10). Sabia da importância de ter essa percepção constante da presença de Deus, não apenas como referência positiva de refúgio e segurança, mas também como exercício da consciência de manter-se distante do que é mal. Andar na presença do Senhor não significa necessariamente que estaremos totalmente impedidos de fazermos o que quisermos, pelo contrário, só Ele pode nos conferir o direito à liberdade plena. A diferença se dá no sentido de abrirmos mão, voluntariamente, daquilo que nos impedirá de sermos plenamente felizes, por conta de aceitarmos a Sua vontade para a nossa vida.
Certa vez ouvi a história de uma garota armênia que foi presa por soldados turcos nos dias da Primeira Guerra Mundial. “Não sou maometana, sou cristã”, disse a garotinha, mesmo sabendo que seria tratada como eram tratados os cristãos. Muito zangados, eles ameaçaram matá-la, lançando-a aos cães selvagens; mas ela insistia em repetir as mesmas palavras: “Não sou maometana, sou cristã” – como se estivesse cada vez mais certa do que estava dizendo.
Depois de muitas ameaças eles a jogaram por sobre o mato onde estavam os cães bravos. Na manhã seguinte eles ficaram maravilhados quando olharam por sobre o muro e a viram dormindo com a cabeça deitada sobre um dos cães. Quando se aproximaram, ela começou a despertar. Ainda meio adormecida, como quem tivesse dormido uma excelente noite de sono, olhou-os e repetiu: “Não sou maometana, sou cristã.” Os supersticiosos turcos, vendo que nenhum mal lhe havia acontecido, venderam-na e dentro de poucos dias ela foi enviada a um orfanato cristão.
“Protege-me, ó Deus, pois em ti me refugio”, disse Davi (v.1), “Tu és o meu Senhor; não tenho bem nenhum além de ti” (v.2); “Tu és a minha porção e o meu cálice; és tu que garantes o meu futuro” (v.5). A garotinha armênia tinha essa mesma certeza, e esta convicção pode ser nossa também; basta querer e exercitar, e o Senhor nos fará “conhecer a vereda da vida, a alegria plena da Sua presença, eterno prazer à Sua direita” (v.11).
Marcilio Egidio
Esposo, pai e pastor – nessa ordem. Eterno aprendiz da arte de servir. Alguém que decidiu colecionar os melhores amigos que a vida pode oferecer.