Não era assim tão incomum que judeus, viajando do norte da Judéia em direção à Galileia, passassem por Samaria. Uma outra opção tornava o caminho tão mais longo, que somente aqueles judeus que quisessem, a todo custo, evitar qualquer contato com os samaritanos, optavam por ela. Dessa forma, ao perceber que os fariseus estavam tentando tirar vantagem do fato de seus discípulos estarem batizando mais que os discípulos de João, provocando certa discórdia e ciúmes entre os interessados, Jesus decide deixar a Judéia e dirigir-se à Galileia, e vai passar por Samaria.
Alguns séculos antes, quando Israel foi dividido em dois reinos, Jerusalém se tornou a capital de Judá, reino do Sul, e Samaria se tornou a nova capital de Israel, o reino do Norte. Após os assírios conquistarem Samaria, em 772 a.C, como parte de sua estratégia de enfraquecimento dos povos conquistados, eles povoaram as regiões que estavam sob seu domínio com estrangeiros, vindos de toda a parte. Assim, eles deportaram todos os Israelitas de posses, que moravam em Samaria, e trouxeram gente de outros lugares para firmar endereço na região. A intenção primeira era enfraquecer os laços familiares, a cultura e a religião de tal forma que as nações invadidas, com o tempo, perdessem a identidade nacional.
Por essa razão, os samaritanos acabaram aderindo aos costumes herdados de casamentos com membros destes outros povos, gerando também, filhos e filhas que passaram a ser considerados como mestiços pelo povo judeu. Como se não bastasse, os samaritanos construíram um templo em Gerizim, e desenvolveram sua própria herança religiosa, baseada no pentateuco, e considerando não canônicos os demais livros da bíblia hebraica. Para um povo que valorizava demais sua herança familiar, cultural e religiosa, temos aqui listados todos os ingredientes para o exercício do orgulho e do preconceito, de ambas as partes.
É nesse contexto que Jesus, vindo da Judéia para a Galileia, decide parar em Samaria. Cansado de uma viagem que levaria ao menos três dias para ser completada, parou junto ao poço de Jacó, por volta do meio-dia, na esperança de encontrar alguém que lhe desse um pouco de água. Sentado à borda do poço, percebe a chegada de uma mulher, que estranhamente decide buscar água no momento mais quente do dia, e estava, muito provavelmente, sozinha, apesar de ser costume entre as mulheres juntarem-se para buscar água logo pela manhã. Eliminando, de uma só vez, todas as barreiras construídas em séculos de animosidades e preconceitos, Jesus dirige-se à samaritana, pedindo-lhe um pouco de água para beber.
A iniciativa de Jesus causa estranheza à samaritana. Aquele encontro, do ponto de vista dela, e de outros tantos judeus e samaritanos, tinha tudo para dar errado. Ela, inicialmente o despreza por ser judeu, talvez até num gesto de auto defesa, por conta de tudo o que os próprios judeus diziam sobre os samaritanos; Ele, por sua vez, seria desprezado pelos judeus por falar com samaritanos. Mas Jesus não está nem um pouco preocupado. Tem algo muito importante a ensinar e não tem tempo a perder. Poderia, mais tarde, ser considerado cerimonialmente contaminado e impuro, por falar e tomar água servida por um samaritano, mas Ele tem consciência de que está muito acima de tudo isso. Jesus, longe de se contaminar pelo que é impuro, santifica o que toca. Outros podem até evitar tocar um leproso com medo de contaminação, Jesus faz questão de tocá-lo, para evitar a rejeição; toca para curar, para restaurar e devolver a dignidade.
Se compararmos o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, no capítulo 4 de João, com o diálogo que teve com Nicodemos, no capítulo imediatamente anterior, teremos a impressão de que João tinha mesmo a intensão de provocar uma reflexão sobre o contraste entre a mulher dessa narrativa e o aristocrata da anterior. Segundo D. A. Carson, “ele era erudito, poderoso, respeitado, teologicamente preparado; e ela era inculta, sem influência, desprezada, capaz somente da religião popular. Ele era um homem, um judeu, um líder; e ela era uma mulher, uma samaritana, pária moral. E ambos necessitavam de Jesus”.
O Mestre das multidões é também o Rabi das entrevistas exclusivas. Fala abertamente àqueles que enfrentam a multidão para receberem a cura, ainda que tenham de abrir um buraco no teto da casa que O abriga, mas fala ao que marcou uma entrevista secreta, em uma madrugada qualquer; fala com quem enfrenta os obstáculos da multidão para apenas tocar na orla de Suas vestes, mas fala com alguém surpreendida pelo pedido de um pouco de água para beber. Nicodemos, mais tarde, vai patrocinar, com seus recursos, uma parte dos trabalhos de evangelismo da igreja cristã no primeiro século; a mulher samaritana vai financiar, doando o próprio coração, um encontro entre Jesus e os moradores de Samaria, imediatamente.
A história desta Grande Mulher passou a ser contada em todo o lugar onde o evangelho foi pregado. Ela continua válida, ainda hoje, dada a sua importância no plano estabelecido por Deus. Me lembra que o Céu não faz distinção entre cultos e incultos, letrados e ignorantes, ricos e pobres, homens e mulheres. A história da mulher samaritana me lembra que o Eterno está sempre aberto para uma conversa franca com aqueles que querem, de fato, compreender o plana da salvação; me torna consciente da minha necessidade de abrir mão dos preconceitos que me impedem de olhar todos os seres humanos, inclusive eu mesmo, como potenciais moradores da Cidade Santa. O registro da conversa entre Jesus e essa Grande Mulher, me lembra que um dia, passando perto de onde eu estava, O Criador decidiu parar para me pedir um “copo de água” e me apresentou a esperança do Reino.
Marcilio Egidio
Esposo, pai e pastor – nessa ordem. Eterno aprendiz da arte de servir. Alguém que decidiu colecionar os melhores amigos que a vida pode oferecer.