Lucas é o único dos evangelistas que tomou tempo para contar essa história. Aliás, o evangelho sob a ótica de Lucas parece ter a intensão de mostrar Jesus em íntimo contato com as necessidades das pessoas, dando ênfase ao aspecto humano da natureza de Cristo. No evangelho que leva seu nome, Lucas apresenta o Mestre como um grande amigo da humanidade, talvez até porque fosse médico de formação e tenha se sentido atraído pelo interesse de Jesus em diminuir o sofrimento das pessoas, esforçando-se para ouvir o relato de suas curas e o testemunho dos envolvidos. O relato aqui destacado, provavelmente ocorreu alguns meses antes da crucifixão, na região da Peréia. Este é o último evento em que Jesus ensina numa sinagoga, e como já era de se esperar, vai encontrar forte oposição por parte dos fariseus, até porque é sábado.
Entre os que participavam do culto, estava uma mulher que sofria há dezoito anos de uma enfermidade que a mantinha curvada, sem poder endireitar o corpo. Qual seria a causa de sua doença? Teria sido uma queda? Um movimento de muito esforço numa posição inadequada? A expressão “causada por um espírito impuro”, ou como na versão Revista e Atualizada, “um espírito de enfermidade”, propõe uma imagem ainda pior. Ao que se percebe, havia entre aqueles que ali estavam, alguns que acreditavam, inclusive, que a situação daquela mulher fosse uma espécie de castigo de Deus, que permitiu a Satanás mantê-la sob seus cuidados. Talvez houvesse ali quem admitisse a ideia de que ela estava sendo esmagada pelo demônio.
Nesta condição aquela mulher não era bem-vinda à sinagoga. Seu lugar não poderia ser encontrado entre aqueles, “quase perfeitos”, que se reuniam para adorar a Deus. Pode ser que muitos dos que frequentavam a sinagoga todos os sábados tivessem orientado seus filhos a nem mesmo se aproximar desta mulher, mantendo-a isolada, mesmo quando estivesse entre eles, na expectativa de também poder participar do momento de adoração. Quem sabe se, neste sábado, em especial, não estivesse lá no fundo, bem atrás do espaço reservado às mulheres e crianças, de cabeça baixa, apenas ouvindo e desfrutando da alegria de estar na casa de Deus. Talvez, estar ali, aos sábados, ainda que sob os olhares de julgamento, isolada no cantinho onde pudesse estar, e enfrentando todo o preconceito dos demais frequentadores da sinagoga, fosse o momento mais libertador e esperado por ela, durante toda a semana.
Mas aquele seria um sábado diferente. Jesus estava ali e ela seria notada pelo Filho de Deus. Ele faria com que todos aprendessem uma grande lição. Como sempre fazia, ensinaria detalhes importantes de Sua missão, concedendo aos ouvintes sinceros a oportunidade de realinharem seus planos aos planos do Pai. Surpreendendo a todos que estavam presentes, “ao vê-la, Jesus a chamou para perto e disse: ‘Mulher, você está curada de sua doença!’. Então ele a tocou e, no mesmo instante, ela conseguiu se endireitar e começou a louvar a Deus.” (Lc 13:12-13)
Sempre que penso nessa história imagino a cena mais ou menos assim: Jesus tem o seu lugar na parte da frente, junto com os outros homens. Chegou acompanhado de seus discípulos, e como todos os demais, espera pelo início da celebração. As mulheres e crianças ocupam um espaço mais ao fundo e atrás deste segundo grupo, num cantinho isolado, está nossa Grande Mulher de hoje, tentando se esconder para não ouvir as mesmas ofensas de sempre. Talvez estivesse ali, calada e concentrada em cada detalhe da adoração. Na imagem que sempre formulo, ela está de olhos fechados, buscando tirar o maior proveito desta nova oportunidade de estar na presença do Eterno. Mal sabe ela que Ele está muito mais perto do que ela jamais imaginaria.
De repente, ela ouve uma voz diferente que interrompe a normalidade da celebração. O Mestre, olhando em sua direção, pede para que vá até Ele, mais adiante, onde ela nunca poderia estar. Imagino que ela deve ter tido dificuldades de acreditar que fosse com ela, que Jesus estivesse falando. Olha para os lados e procura ter certeza de que, de fato, era o alvo daquele estranho convite. A certeza se dá quando percebe, com dificuldade, que todos estão agora olhando para ela. Percebe que não é a única tomada de grande surpresa. Junta toda a coragem de que dispõe, e obedece à ordem de quem a chama para estar mais perto dele. De repente, como num “passe de mágica”, sai do anonimato da plateia marginalizada para o protagonismo planejado por Cristo – torna-se, ao lado do Mestre, o centro das atenções daquele momento! “Então ele a tocou e, no mesmo instante, ela conseguiu se endireitar e começou a louvar a Deus.”
Movido pela inveja, e a dureza de seu coração, o chefe da sinagoga vai declarar-se contrariado e ofendido com o que acabara de acontecer. Em defesa de sua indignação, argumenta em função da santidade do sábado, alegando que este não é um dia apropriado para operar curas e sinais. Sua tentativa de causar problemas a Jesus, e talvez, o desejo de realçar sua autoridade e conhecimento, só lhe causaram ainda mais constrangimento. Contrariando a expectativa do chefe da sinagoga, Jesus confere ainda mais valor à mulher que fora muito maltratada, inclusive por ele, um líder religioso daquele lugar, chamando-a de filha de Abraão. Ao tratá-la dessa forma, o Mestre, de maneira surpreendente, a inclui como membro da família de Abraão em um local público. A expressão “Filho de Abraão” sempre foi muito utilizada na bíblia, mas “Filha de Abraão” é extremamente raro.
Diante de todas aquelas pessoas, a maioria muito religiosa e sincera, Jesus oferece àquela mulher um lugar de destaque. Confere-lhe honra e valor, ao curá-la de seu mal e libertá-la de seu sofrimento. Após o toque de compaixão de Cristo, pela primeira vez em dezoito anos, essa “Filha de Abraão”, que passou tempo demais de cabeça baixa, talvez com vergonha de tudo o que se dizia sobre ela, finalmente estende sua coluna ao máximo, na clara intenção de glorificar o nome de Deus, pelo benefício alcançado. Nada traz mais honra ao Salvador que um coração disposto a declarar sua gratidão através do louvor e da adoração a Deus.
Enquanto escrevia, estive pensando: Será que esta história, hoje, 25 de março, não teria, no coração de Deus, a clara intenção de me fazer confiar em Seu poder de eliminar, da minha vida, tudo aquilo que me tem feito passar tempo demais olhando apenas para baixo? Não estaria o Eterno, olhando para mim, escondido ali, em algum lugar da plateia, e me convidando para subir no palco e assumir meu papel de protagonismo na expansão do reino? Não estaria Ele mesmo, me chamando, tendo em vista Seu desejo de me conferir dignidade através do toque de Sua misericórdia e compaixão? Será que o convite não é para todos nós? Será? Eu creio que seja exatamente assim!
Marcilio Egidio
Esposo, pai e pastor – nessa ordem. Eterno aprendiz da arte de servir. Alguém que decidiu colecionar os melhores amigos que a vida pode oferecer.