Embora Jesus tenha ido para a região da Fenícia por causa do encontro com os escribas e fariseus de Jerusalém, como todas as outras decisões que tomava, o Mestre tinha ainda uma intenção bem específica para estar em território fenício. Como sempre, faria uso da ocasião e da necessidade, para ensinar algo muito importante aos discípulos. Após ter sido rejeitado pelos judeus, tanto da Judéia como da Galiléia, Cristo buscava uma oportunidade para abrir os olhos e o coração dos discípulos, no sentido de instruí-los a trabalhar também pelos não judeus. A história do encontro de Jesus com a Grande Mulher de hoje está cercada de expressões carregadas de preconceito e barreiras culturais, ainda assim, propõe grandes lições e uma excelente reflexão.
Os fenícios pertenciam a uma antiga etnia cananeia. Na verdade, eles se consideravam cananeus, mas, aparentemente, passaram a ser assim chamados depois de iniciarem suas relações comerciais com os gregos. Fato é que, embora os samaritanos não fossem muito queridos pelos judeus, o ministério de Jesus entre eles seria, sempre, bem menos contestado que qualquer ação que visasse a salvação dos cananeus, ou qualquer outra nação reconhecidamente pagã. O orgulho judeu, e sua vaidade alimentada pelo sentimento de exclusivismo, tendia a aceitar os samaritanos um pouco mais, em razão de sua origem israelita, mas qualquer ação de Jesus em favor de alguém, com origem totalmente pagã, seria imediatamente censurada pelos judeus.
Enquanto caminhava pela região montanhosa da fronteira entre a Galileia e a Fenícia, foi alcançado por uma mulher que se aproximou fazendo um pedido muito especial: “Senhor, Filho de Davi, tenha misericórdia de mim! Minha filha está possuída por um demônio que a atormenta terrivelmente” (Mt 15:22). Quando a mulher O encontrou, ela se prostrou diante de Jesus, como quem se apresenta a alguém, reconhecidamente superior, para fazer uma petição, conforme o costume da região. Não estava ali por acaso. Viera em busca de Jesus, certamente por já ter ouvido algumas de Suas histórias e pela fama de Seus feitos. Os rumores do ministério de curas de Jesus já haviam ultrapassado as fronteiras da Judeia e da Galileia, chegaram aos ouvidos daquela mãe e encheram seu coração de esperança. Agora, ela mesma se via diante de uma oportunidade única de trazer paz à vida de sua filha e de sua casa.
Ao abordar o Mestre, a mulher, embora sendo pagã, surpreende a todos com palavras de reconhecimento da autoridade de Cristo: “Senhor, Filho de Davi, tenha misericórdia de mim!” Ela se dirige a Jesus usando termos que o identificavam como o Messias. O mais interessante é que tal reconhecimento o próprio Mestre não encontrou, com a mesma facilidade, entre os judeus que, supostamente, aguardavam por Ele. A exemplo de Raabe, aquela mulher teve sua fé alimentada pelas histórias que certamente ouvira de outros judeus que moravam na região, e pelo que se vê, não desistiria tão fácil de sua missão. Ainda que tenha, muito provavelmente, ouvido os discípulos sugerirem que Jesus a mandasse embora, percebeu no silêncio de do Mestre, uma boa razão para ficar e insistir.
Lembre-se que havia ao menos três barreiras que poderiam tê-la desencorajado: (1) era gentia, e os judeus, como já dissemos, não gostavam dos gentios; (2) cananeia; e as lembranças dos judeus em relação aos cananeus não eram as melhores e (3) era uma mulher, e segundo o costume da época, as mulheres não se dirigiam aos homens, muito menos estranhos, na rua. Mas nada disso a impediu de falar com o Jesus. Sua motivação era muito maior que qualquer muro ou barreira que se erguesse entre os dois. Estava ali por uma razão muito maior, e sabia que nada pode impedir uma mãe de ir ao limite de suas possibilidades em favor dos filhos, e quando o limite não é o suficiente, entregar-se completamente a Deus, que completa com o impossível.
É importante notar, no entanto, que, ainda que seu pedido tenha um tom de desespero, ele foi muito bem elaborado e consciente. Como quem precisa aproveitar a chance que surgiu, sem que estivesse esperando, numa única e curta frase, nossa heroína reconhece Jesus como verdadeiro Rei, ao identificá-Lo como Filho de Davi; aceita-O como seu Rei e Mestre, ao chamá-Lo de Senhor; e faz uma oração simples e, ao mesmo tempo, cheia de fé: “Tem compaixão de mim” (Mt 15:22) e “Ajuda-me!” (Mt 15:25). Sua persistência durante esse breve encontro com Jesus revela não apenas seu interesse pela cura de sua filha e seu amor de mãe, mas uma fé tamanha, que o Mestre não encontrou em muitos corações judeus. Ainda que tivesse raízes culturais que a ligavam ao povo cananeu, pagão e idólatra, essa Grande Mulher está disposta a provar que já aceitara para si a soberania do Deus de Israel, reconhecendo-O como superior aos deuses que eram adorados por seu povo. Assim como Raabe, ela também intercede por sua família, confia que pode alcançar misericórdia e volta para casa com a benção que viera buscar.
Há ainda um outro detalhe que me chama a atenção nesta história. Ao enfrentar o preconceito religioso, cultural, étnico e até político, essa mulher me lembra que, às vezes, é preciso ir ao limite do constrangimento para receber a benção que tanto esperamos, não porque Deus exija esse tipo de constrangimento como requisito para atender a petição, mas para que saibamos, nós mesmos, até onde estaríamos dispostos a ir, em nossa relação com Ele, em favor de alguém que amamos. Esta história me lembra de Abraão, intercedendo pelas cidades de Sodoma e Gomorra, e não apenas por parte de sua família que morava naquele jugar. Em seu pedido intercede por 50, 45, 40, 30, 20…, até finalmente dizer: “Senhor, não fiques irado comigo por eu falar mais uma vez. Suponhamos que haja apenas dez…” (Gn 18:32).
Diante de histórias como essas, sempre me pergunto até onde eu seria capaz de ir, ao interceder, diante de Deus, por alguém da minha família, por exemplo. Será que estaria, eu mesmo, disposto a ir ao limite do constrangimento, para interceder por você, leitor, ao saber de uma necessidade específica e especial que você tem? Até onde eu iria, na busca de um milagre na sua vida, ou na vida da minha esposa e filhos? Até onde você iria, ao interceder por mim diante de Deus? Vou investir um tempo, hoje, pensando exatamente nisso. Quero ao final do dia, sob a ação do Espírito Santo, concluir que seguirei o exemplo dessa mulher, não só pelos meus filhos, esposa e amigos, mas por você também – ainda que não o conheça pessoalmente, ainda!
Marcilio Egidio
Esposo, pai e pastor – nessa ordem. Eterno aprendiz da arte de servir. Alguém que decidiu colecionar os melhores amigos que a vida pode oferecer.