Onde está o seu irmão?
Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel? ” Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão? “
Gênesis 4:9
Imagino que tão difícil quanto buscar respostas para as perguntas do Criador, foi ter que se despedir daquele lugar maravilhoso em que viviam. Talvez, em algum momento, Adão e Eva tivessem considerado a possibilidade de receberem, juntamente com o perdão, uma nova chance de permanecerem no Jardim, como presente da misericórdia de Deus. Estavam errados. Caso permanecessem por lá, continuariam tendo acesso à Árvore da Vida, e perpetuariam sua vida de pecado. Não apenas foram expulsos, como também foram impedidos de voltar.
Enquanto conversavam com o Eterno, não tiveram coragem de assumir completamente as consequências de suas próprias decisões. Perceberam, mais uma vez, que o pecado já havia alterado por completo sua relação com o Criador. Primeiro tiveram medo de recebê-Lo no Jardim e se esconderam ao ouvir a Sua voz; agora insinuavam que Deus era o culpado por tudo o que havia ocorrido, já que foi dEle a ideia de criar a serpente e a mulher (Gn 3:12-14). Esquivaram-se do exercício de chamar para si a responsabilidade de seus erros, e nos deixaram como herança essa mesma tendência. Até hoje nós, seres humanos, temos como característica bem marcante do nosso comportamento a predisposição de transferir nossa culpa.
Adão e Eva, criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26), foram convencidos pela “serpente” de que poderiam ser iguais a Deus – conhecedores do bem e do mal. De certa forma esta declaração não estava de todo errada. Ainda que tivessem sido orientados, não haviam experimentado o mal e suas consequências. Seu desejo de ser como Deus levou-os a uma realidade bem diferente da que viviam, e descobririam, da pior forma possível, o mal que fizeram a si mesmos, primeiro ao testemunharem a morte do cordeiro que lhes serviu a pele para cobrir sua nudez (Gn 3:21), e mais tarde, quando encontraram o corpo, já sem vida, de Abel, seu filho. Quanta tragédia!
A alegria de dar à luz aos meninos, de imaginar que eles poderiam ser o Redentor prometido, agora transformara-se em pranto, saudade e tristeza. Num único dia, sofreram duas grandes perdas: um filho morto e outro fugitivo! Em Abel perceberam a dor causada pela inversão do processo natural da vida. Descobriram o quanto dói no coração quando um pai e uma mãe têm de sepultar o filho, mas também perceberam o quanto Caim havia herdado deles. Longe de seus olhares, seguindo o próprio coração, o filho mais velho, sem querer aceitar a orientação de Deus, tivera sua oferta negada, e com inveja do irmão, tirou-lhe a vida (Gn 4:8). Enquanto fugia, Caim foi abordado pelo Senhor, e esta parte da história nos leva a segunda grande pergunta do livro de Gênesis: “Onde está seu irmão?” (Gn 4:9).
Mais uma vez a pergunta vem de quem já sabe a resposta. Logo, sua intenção não é, necessariamente, obter uma informação, mas provocar uma reflexão; visa permitir a quem foi questionado que examine o próprio coração a fim de revelar os mais sinceros sentimentos. Tem a clara intenção de gerar, através deste desconforto, arrependimento em sua consciência culpada e oferecer-lhe a chance de mudar o rumo de sua história. Assim como havia feito a Adão e Eva, Deus agiu com Caim, mas os resultados foram bem diferentes. Seus pais, ainda que tentassem justificar as falhas na ocasião, assumiram parte da culpa ao declararem que decidiram deliberadamente comer o fruto proibido; Caim, ao contrário, tenta esconder a verdade de Deus, achando que poderia ocultar o seu crime. “Não sei, respondeu Caim. Por acaso sou responsável por meu irmão?” (Gn 4:9).
Hoje, aos quarenta e seis anos de idade, estou testemunhando o que considero ser o pior momento da história do mundo moderno. Talvez minha opinião esteja comprometida pela minha cosmovisão, mas não me lembro de ter passado por uma situação tão assustadora quanto essa que enfrentamos. O mais interessante é que, por mais que esteja a milhares de anos a frente do momento em que esta pergunta foi feita pela primeira vez, ela se mostra cada dia mais atual e relevante para mim. Cada vez que assisto a um telejornal, ou acompanho as notícias através dos meios de comunicação, me dou conta de estar ouvindo o Criador me fazer a mesma abordagem. Tenho a sensação de ouvi-Lo me perguntar: Marcilio, onde está o seu irmão? Onde está aquele de quem você deveria estar cuidando?
Graças a Deus nunca cometi nenhum crime contra ninguém, muito menos contra meus dois irmãos, a quem quero muito bem, mas estas questões envolvem muito mais do que aquelas que nos dispomos a considerar. Me faz pensar no quanto tenho me tornado insensível à dor do outro, só porque não sou eu mesmo, ou alguém que eu amo, quem está sofrendo. Me faz refletir no comportamento egoísta que me leva a escurecer os vidros do meu carro para não ver, e não ser visto, por quem, estando do lado de fora, dorme nas calçadas desta metrópole chamada São Paulo, sem ter como trabalhar, comer ou se aquecer nas noites geladas de inverno. Esta mesma pergunta me faz pensar, inclusive, nas vezes em que quis me antecipar aos grupos prioritários, e buscar a solução vacinal, para mim mesmo, e minha família, antes mesmo de ver atendidos meus irmãos dos grupos de maior risco. Tenho visto, por todo canto, uma multidão de gente que pouco se importa com a segurança do próximo, e anda por aí, como se não tivesse nenhuma responsabilidade com a vida de todos os outros que foram deixados aos nossos cuidados, ainda que não os conheçamos por nome ou filiação. Pior, às vezes, de dentro do meu carro, ou no conforto da minha casa, me vejo refletido no comportamento dessa gente insensível e irresponsável!
Nessas horas, como ato de Sua misericórdia, Deus tem insistido em me perguntar: Marcilio, onde está o seu irmão? Onde está aquele de quem você deveria estar cuidando? O que você fez ontem, ou nas últimas horas, para diminuir o sofrimento de alguém? Quando foi a última vez que você realmente se importou com a vida de um “estranho” que te pediu ajuda? O que é que você tem feito com as bênçãos que tenho derramado em sua vida, hein!?
Não sei você, mas eu vou aproveitar o dia para pensar nessas questões, consciente de que Deus não está tentando colher informações, mas provocar reações.
Marcilio Egidio
Esposo, pai e pastor – nessa ordem. Eterno aprendiz da arte de servir. Alguém que decidiu colecionar os melhores amigos que a vida pode oferecer.